text by Paulo Kassab Jr.
Assim como acontece com a fotografia, uma das coisas que fazemos desde a antiguidade para tentar simplificar o mundo é enquadrá-lo, seja entre paredes de concreto ou, ainda mais, em conceitos disseminados como verdade em nome da segurança, da moral, da tradição e dos bons costumes. Aos que pensam, desejam, caminham de forma diferente, o lado de lá. Para isso, criam-se fronteiras, sobem-se muros, deflagram-se guerras.
Com o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim em 1989, o mundo finalmente seria capaz de se tornar a tão esperada “aldeia global”. Alguns até falaram do fim da história. Desde o final da década de 1980, a tendência para a globalização intensificou-se significativamente. As barreiras comerciais foram pouco a pouco removidas sob o impulso do Acordo Geral de Tarifas e Comércio, da Organização Mundial do Comércio, e a criação de vastos espaços livres. O intercâmbio facilitou a circulação de mercadorias e pessoas e, o surgimento de novas tecnologias de informação permitiu a globalização da comunicação e a transmissão de idéias. Estes desenvolvimentos fundamentais que estruturam o mundo até hoje, foram, no entanto, acompanhados por fenômenos contrários, menos visíveis à primeira vista, mas igualmente importantes, incluindo o da fragmentação relativa. O símbolo mais visível deste último acontecimento é a multiplicação silenciosa de paredes divisórias, em aço ou concreto, em diferentes lugares do planeta. Segundo Michel Foucher, existem hoje 17 muralhas internacionais, cobrindo 7.500 quilômetros, ou 3% das fronteiras atuais (Foucher, 2007).
A construção de paredes não é um fenômeno novo. Já no século IV aC, Alexandre, o Grande, ergueu um muro para afastar os bárbaros, entre as montanhas do Cáucaso e as margens do Mar Cáspio. A Grande Muralha da China da Dinastia Qin, iniciada no século III aC, funcionou por vários séculos. Outros exemplos históricos, como a Muralha Romana de Adriano, a Muralha do Atlântico, as linhas Pedron ou Morice, até mesmo a linha Maginot, também podem ser citados. Todas esses muros serviam principalmente a uma função defensiva, no sentido militar do termo. Tratava-se sobretudo de se opor, nas próprias fronteiras de um território controlado, a um possível ataque de tropas inimigas claramente identificadas.
A novidade dos séculos XX e XXI reside no fato de que os obstáculos físicos ao comércio se multiplicaram, à medida que nos tornamos mais móveis, que as barreiras físicas pareciam estar se apagando e o “fim dos territórios” parecia se tornar realidade . O paradoxo é apenas aparente. Na realidade, a tentação dos muros parece para muitos constituir uma resposta, mais ou menos eficaz e credível, a certos “novos” desafios gerados pela globalização (terrorismo, pobreza, imigração, desigualdade). Podemos, entretanto, unir todas as paredes em uma mesma categoria? Quais são as novas ameaças para as quais certas paredes deveriam fornecer uma solução? Qual é a sua eficácia real? O que eles revelam sobre o estado de nosso mundo e de nossas sociedades?
Enquanto a parede marca a assimetria, materializa a diferença e o desequilíbrio produzidos por uma separação muitas vezes desejada e sofrida, o dinheiro engana, exclui, compra sonhos e constrói distâncias afim de perpetuar o sistema.
O que poderia haver em comum entre George Washington, Princesa Isabel, Nelson Mandela, Rainha Elisabeth, Simon Bolivar e Luiz de Camões? Além do homologação histórica, talvez apenas a rápida apropriação do ícone e de sua simbologia pelo capitalismo. O sistema aceita tudo, toma como seu e oferece em troca pequenas concessões, em nome, obviamente, da manutenção contínua dos privilégios. Qualquer imagem, discurso ou escrita, vira produto, posse, dinheiro. A famosa fotografia de Che Guevara, feita por Alberto Korda, agora estampa embalagens de sorvete, maços de cigarro e bandeiras de times de futebol.
Se o proveito da imagem pela indústria desloca e esvazia o símbolo, quando tomado pelo Estado, torna-se estratégia para desde criar a personificação de um país, até a dissimular um acerto de contas com seu passado racista e colonialista. Enfeitadas com sentenças, insígnias e imagens históricas, as notas de dinheiro são um dos símbolos mais explícitos da identidade de uma nação, ou da falsa realidade construída e mascarada em democracia. Consciente da capacidade humana do esquecimento e apagamento sistemático da memória, o mesmo país que por anos desterra, ignora e massacra seus povos originários, inclui em suas cédulas e moedas o rosto de indígenas, de cacique Tibiriçá (cem réis – 1932), aos carajás (mil cruzeiros 1990). Enquanto nossas florestas incendeiam em nome do dinheiro e do agronegócio, as cédulas celebram o beija-flor, a arara, a onça pintada, a garoupa e o lobo-guará..
O capital não se importa com suas contradições, simplesmente usurpa conceitos, desde que possa se beneficiar deles com ganho de patrimônio social, cultural ou financeiro. Cada movimento é pensado pela manutenção do status-quo com ares de transformação social. E o muro aumenta, invisível. Separa, segrega, elege o velho com roupagem e nome novos. Enquadrados, postados lado a lado em caixas (série“mentalidade colonial”), os rostos nas cédulas falam de poder, de ficção, história e, sobretudo, relatam a invenção do capital como principal fronteira, muito além dos muros físicos, mas também patrocinador deles.
As paredes, tanto reais como virtuais, financeiras ou psíquicas, tentam oferecer o que Heidegger chamou de “uma imagem tranquilizadora do mundo”, no qual todos devem existir segundo um modelo, uma integração sócio-psíquica única. Assim, em várias situações, a exclusão decorre sobretudo dos conflitos de identidade e da violência que eles podem envolver. Os muros explicitam uma realidade do mundo reduzida a uma clara distinção entre “nós” e os outros “, entre dentro e fora, entre amigo e inimigo. Entre o lado bom e o lado ruim da parede, entre conhecido e desconhecido, entre rico e pobre, entre seguro e arriscado, entre desejado e indesejável. Na verdade, “o muro sempre corre ao longo de uma linha de desequilíbrio, falha de globalização, desequilíbrio de riqueza, desequilíbrio de poder” (Ritaine, 2009)
Seguindo a mesma linha de pesquisa que pautou suas séries anteriores, ou seja, a formação da sociedade em suas características fundamentais como o direito à habitação (“Numa janela do Edifício Prestes Maia”) , a garantia do lazer (“Ramos”) e a ocupação e vivência de espaços globalizados (“Plethora”) , agora, na exposição ”Sobre Muros”, Julio Bittencourt pretende fazer com que questionemos nossos próprios muros, os grupos específicos com os quais nos identificamos e nos relacionamos ou aqueles com os quais rompemos por divergência, ignorância, crença, arrogância ou medo.
E seguimos perplexos. Como chegamos aqui? Aos que acreditavam em uma utópica transformação após a maior crise sanitária do nosso século, vale lembrar que em plena pandemia, enquanto milhões passavam fome e faziam fila por ossos, a veneração a um hediondo boi dourado, copia barata de Wall Street (Rua do Muro), já anunciava: estamos emparedados.